Ao examinar pela primeira vez no Superior Tribunal de Justiça (STJ) uma alegação de nulidade por violação do parágrafo 2º do artigo 489 do Código de Processo Civil de 2015, a Terceira Turma fixou uma série de parâmetros para a análise da fundamentação da decisão recorrida quanto à exigência de ponderação entre normas ou princípios jurídicos em colisão.
De acordo com o ministro Villas Bôas Cueva, relator do caso julgado, a nulidade da decisão por violação daquele dispositivo só deve ser declarada “na hipótese de ausência ou flagrante deficiência da justificação do objeto, dos critérios gerais da ponderação realizada e das premissas fáticas e jurídicas que embasaram a conclusão, ou seja, quando não for possível depreender dos fundamentos da decisão o motivo pelo qual a ponderação foi necessária para solucionar o caso concreto e de que forma se estruturou o juízo valorativo do aplicador”.
O recurso examinado na turma foi interposto pela Sociedade Beneficente Muçulmana, autora de ação contra o Google por causa de suposta ofensa à liturgia religiosa islâmica no vídeo do funk Passinho do Romano, publicado no YouTube, o qual cita trechos do Alcorão. A partir da ponderação entre a liberdade de expressão e a inviolabilidade das liturgias religiosas – dois princípios constitucionais –, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concluiu não haver ofensa e rejeitou o pedido de indenização e de retirada do vídeo.
No recurso ao STJ, a entidade muçulmana alegou que o TJSP violou os artigos 1.022 e 489, parágrafos 1º e 2º, do CPC/2015, visto que não teria enfrentado todos os argumentos expostos pela parte autora nem observado os critérios previstos na lei processual no que diz respeito à técnica de ponderação em caso de conflito entre normas.
Para a recorrente, houve deficiência de fundamentação diante da omissão quanto aos motivos para priorizar o direito à liberdade de expressão, em detrimento do direito à proteção da liturgia e da crença religiosa; e também em razão da não explicitação dos critérios gerais da ponderação realizada entre tais princípios.
Situação peculiar
Em seu voto, o ministro Villas Bôas Cueva destacou que se trata de caso peculiar, já que a reforma do CPC incluiu um rol de novos artigos destinados a orientar os juízes sobre como proceder diante de colisão entre normas, garantindo assim meios para que a interpretação corresponda à entrega de uma prestação jurisdicional efetiva, conforme o artigo 93, IX, da Constituição Federal.
O relator ressaltou ainda que, apesar da possível insegurança jurídica causada pela inserção do parágrafo 2º no artigo 489 do CPC/2015 – que não deixou claro como e em quais casos deve ser utilizada a ponderação –, é preciso lembrar que o CPC tem como objetivo a criação de uma jurisprudência íntegra, estável e coerente, e é com base nisso que se tem de interpretar a norma.
“Pode-se entender o parágrafo 2º do artigo 489 do CPC/2015 como uma diretriz que exige do juiz que justifique a técnica utilizada para superar o conflito normativo, não o dispensando do dever de fundamentação, mas, antes, reforçando as demais disposições correlatas do novo código, tais como as dos artigos 10, 11, 489, parágrafo 1º, e 927.”
Critérios
Segundo Villas Bôas Cueva, o parágrafo 2º do artigo 489 visa assegurar “a racionalidade e a controlabilidade da decisão judicial, sem revogar outros critérios de resolução de antinomias, tais como os apresentados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”.
Em seu voto, acompanhado de forma unânime pela Terceira Turma, o ministro estabeleceu algumas balizas para o exame da fundamentação quanto à ponderação.
Segundo ele, “a pretensão de rever o mérito da ponderação aplicada pelo tribunal de origem não se confunde com a alegação de nulidade por ofensa ao artigo 489, parágrafo 2º, do CPC/2015”. O dever das instâncias recursais competentes – acrescentou – é conferir, em cada situação, se a técnica da ponderação foi bem aplicada e, consequentemente, se a decisão judicial possui fundamentação válida.
“O exame da validade/nulidade da decisão que aplicar a técnica da ponderação”, disse Villas Bôas Cueva, “deve considerar o disposto nos artigos 282 e 489, parágrafo 3º, do CPC/2015, segundo os quais a decisão judicial constitui um todo unitário a ser interpretado a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé, não se pronunciando a nulidade quando não houver prejuízo à parte que alega ou quando o mérito puder ser decidido a favor da parte a quem aproveite”.
Competência
Ao considerar o caso em exame, o relator salientou que não cabe ao STJ, “a pretexto de apreciar recurso especial baseado apenas na alegada violação do artigo 489, parágrafo 2º, do CPC/2015 adentrar o mérito da ponderação entre duas normas constitucionais, sob pena de se exceder na sua atribuição de uniformizar a interpretação da legislação federal”.
Assim, a Terceira Turma definiu que, “em recurso especial, a pretensão de revisão do mérito da ponderação efetuada pelo tribunal de origem pressupõe que se trate de matéria infraconstitucional, além da indicação, nas razões recursais, das normas conflitantes e das teses que embasam a sustentada violação/negativa de vigência da legislação federal”.
Além disso, estabeleceu que, “tratando-se de decisão fundamentada eminentemente na ponderação entre normas ou princípios constitucionais, não cabe ao STJ apreciar a correção do entendimento firmado pelo tribunal de origem, sob pena de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal”.
Caso concreto
A turma não reconheceu as nulidades apontadas pela Sociedade Beneficente Muçulmana. Quanto à alegada violação doartigo 1.022 do CPC, os ministros concluíram que o TJSP enfrentou todas as questões necessárias à solução da controvérsia, além de ter apresentado de forma clara os motivos fáticos e jurídicos que levaram o juízo a decidir pela prevalência da liberdade de expressão.
Sobre a ponderação de princípios, o colegiado, com base nos parâmetros propostos pelo relator, não reconheceu deficiência de fundamentação e entendeu que a competência para avaliar a correção do julgamento realizado pela Justiça paulista, por se tratar de matéria constitucional, é do STF.
Fonte: STJ