O crédito consignado e os efeitos da litigância abusiva

O crédito consignado tem se consolidado como uma das modalidades de financiamento mais vantajosas para o consumidor brasileiro, especialmente pelas taxas de juros reduzidas e pela segurança proporcionada pelo desconto automático em folha de pagamento. No entanto, o cenário recente é marcado por um significativo aumento da judicialização dessa modalidade de crédito, muitas vezes de forma abusiva, gerando impactos negativos tanto para os consumidores quanto para as instituições financeiras.

O debate do tema ganhou um novo capítulo desde o anúncio, pelo governo Federal, de uma nova linha de crédito consignado para trabalhadores com carteira assinada, incluindo empregados rurais, domésticos e MEI – microempreendedores individuais. Sob o título de “Crédito do Trabalhador”, o programa reconhece essa modalidade de crédito como meio de estimular a economia, permitindo que os trabalhadores utilizem até 10% do saldo do FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço como garantia para a contratação do empréstimo. Além disso, é possível utilizar 100% da multa rescisória em caso de demissão sem justa causa, que corresponde a 40% do saldo do FGTS.

O aumento da oferta de crédito consignado será acompanhado do conhecido desafio da litigância abusiva. A judicialização excessiva e muitas vezes predatória tem gerado impactos negativos tanto para as instituições financeiras quanto para os consumidores, com reflexos diretos na precificação do crédito e na sustentabilidade dessa modalidade de financiamento. Diante disso, é fundamental refletir sobre os impactos econômicos e jurídicos da litigância abusiva no crédito consignado, bem como sobre possíveis medidas para conter práticas que prejudicam tanto os consumidores quanto as instituições financeiras.

Para alinhar a exata compreensão do tema, é importante considerar que o crédito consignado é caracterizado pelo pagamento da dívida diretamente em folha salarial do tomador, o que reduz significativamente o risco de inadimplência e, consequentemente, os custos das operações de crédito (PINHEIRO, 2020). A modalidade é regulamentada pela lei 10.820, de 17/12/03, que estabelece regras para a concessão desse tipo de empréstimo a aposentados, pensionistas e trabalhadores do setor privado e público.

Além disso, a resolução 3.954, de 24/2/11, do Banco Central do Brasil, determina os limites para as taxas de juros aplicáveis, garantindo que os tomadores tenham acesso a condições justas de financiamento. Como produto de crédito seguro, o consignado se destaca como alternativa viável para consumidores que precisam equilibrar seu orçamento sem comprometer o próprio sustento com despesas extraordinárias.

Com tudo, o crescimento exponencial de ações judiciais relacionadas ao crédito consignado, pelas vias de práticas fraudulentas, como alegações infundadas de contratação não reconhecida, tentativas de revisão contratual desprovidas de base legal e pedidos de restituição de juros sob fundamentos inverídicos, classificadas como litigância predatória, desviam o ofício jurisdicional para o processamento e julgamento de ações sustentadas pelo único e ilegítimo intuito de se obterem vantagens indevidas (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2021).

Entre os principais desvios de litigância abusiva no crédito consignado, destacam-se:

  • Fraudes por auto simulação: Casos em que o próprio tomador contrai o empréstimo e, posteriormente, alega o desconhecimento do serviço, buscando a restituição dos valores pagos. Segundo dados do CNJ, em 2022, cerca de 35% das ações envolvendo crédito consignado apresentavam indícios de fraude por auto simulação (CNJ, 2022).
  • Revisão das taxas de juros sem fundamento: Demandas que visam à redução dos juros de contratos já firmados, mesmo quando se adequam aos limites estabelecidos pelo Banco Central. Estudo realizado pelo IBDB – Instituto Brasileiro de Direito Bancário (2023) demonstrou que 42% das ações ajuizadas entre 2021 e 2023 tiveram o objetivo da revisão de juros sem qualquer comprovação de abusividade.
  • Ações idênticas massificadas: Escritórios captadores de litígios movem milhares de ações idênticas, sem individualizar as alegações, sobrecarregando o Judiciário e criando um efeito especulativo sobre as instituições financeiras. O TJ/SP identificou que, em 2023, cinco escritórios jurídicos concentravam mais de 60% das demandas de revisão de crédito consignado no Estado (TJ/SP, 2023).

Outro fator que agrava a litigância abusiva no setor de crédito consignado é a atuação de empresas de intermediação que promovem fraudes contra consumidores e instituições financeiras. Algumas dessas empresas abordam aposentados e pensionistas com a falsa promessa de recuperação de valores indevidos ou revisão contratual vantajosa. No entanto, tais ações são, muitas vezes, baseadas em argumentos inconsistentes e configuram fraudes processuais. Além disso, há registros de casos em que esses atravessadores retêm indevidamente parte dos valores recebidos pelos clientes, gerando prejuízos diretos a consumidores vulneráveis.

O abuso do direito de ação, notadamente no que se refere às revisões das taxas de juros, faz surgir um efeito colateral preocupante: o aumento dos custos operacionais das instituições financeiras. Além das despesas processuais, os bancos são forçados a provisionar recursos para cobrir riscos adicionais, com reflexos diretos na precificação do crédito (TARTUCE, 2022).

Em última análise, a crescente judicialização do crédito consignado pode comprometer a sustentabilidade desse modelo de financiamento. O aumento das ações judiciais induz as instituições financeiras a elevarem as taxas de juros para compensar os riscos, encarecendo o crédito para todos os consumidores. Esse fenômeno se alinha à chamada “economia dos litígios”, onde o excesso de demandas judiciais gera um ambiente de incerteza jurídica que, por sua vez, impacta negativamente o mercado de crédito (SCHREIBER, 2019).

Adicionalmente, o efeito de resfriamento do crédito consignado conduz a uma restrição na concessão desse financiamento, especialmente para consumidores de menor renda. Como resultado, indivíduos que, antes poderiam usufruir das vantagens dessa linha de crédito para enfrentar despesas inesperadas, podem se manter a distância de alternativas de financiamento seguras, sendo obrigados a recorrer a modalidades mais onerosas.

Diante do avanço da litigância abusiva no crédito consignado, é essencial a adoção de medidas que restrinjam os reveses sobre o mercado consumidor e, sobretudo, financeiro. Nesse sentido, sugere-se a implementação de algumas estratégias:

  • Adoção de filtros processuais mais rigorosos: O Poder Judiciário deve intensificar a aplicação de mecanismos que identifiquem e coíbam demandas fraudulentas. A imposição de multas e a responsabilização por litigância de má-fé, conforme o art. 80 do CPC (BRASIL, 2015), devem ser aplicadas de forma mais eficaz.

 

  • Atuação sistemática e incisiva dos órgãos reguladores: O Banco Central, a SENACON e o Ministério da Justiça devem estabelecer mecanismos que desestimulem fraudes e revisões contratuais sem fundamento. Campanhas educativas sobre os direitos e deveres dos consumidores no crédito consignado são de grande utilidade.

 

  • Desenvolvimento de mecanismos alternativos de resolução de conflitos: A mediação e a conciliação são instrumentos fundamentais para evitar o ajuizamento desnecessário de demandas. A implementação de núcleos especializados nos Tribunais pode agilizar a solução de conflitos e reduzir a sobrecarga do sistema Judiciário.

 

  • Criação de sistema de monitoramento de litigância abusiva: A formação de um cadastro nacional de litigantes reincidentes pode servir como ferramenta para identificação de práticas predatórias. Escritórios de advocacia que ajuízam ações massificadas, sem individualização das alegações, devem ser fiscalizados com rigor.

 

  • Aperfeiçoamento dos contratos e dos mecanismos de transparência: Instituições financeiras podem aprimorar a clareza dos contratos de crédito consignado, garantindo que os consumidores compreendam integralmente as condições pactuadas. A adoção de ferramentas tecnológicas que possibilitem a gravação do consentimento do tomador também é um instrumento probatório de combate de alegações infundadas de não contratação.

 

Nesse contexto, a adoção de tecnologias inovadoras tem se mostrado uma ferramenta eficaz para garantir a segurança jurídica das transações e reduzir o número de ações judiciais infundadas. Atendendo ao apelo do Poder Judiciário, as instituições financeiras têm desenvolvido plataformas para validação das contratações por meio de videochamadas. Essa inovação, que não se restringe a selfies e provas de vida tradicionalmente utilizadas nas contratações digitais, permite a gravação em tempo real da interação entre o consumidor e o preposto dos bancos. Durante a referida videochamada, são confirmados os dados pessoais do contratante, o produto ofertado, a intenção de contratar e o aceite formal do cliente.

Sabe-se que o CPC, em seus arts. 396 a 484, regulamenta os elementos que contribuem para a formação da convicção do julgador quanto à existência de fatos controvertidos. Nesse sentido, o modelo de gravação audiovisual descrito enquadra-se na categoria de prova digital, plenamente aceita no âmbito processual, definida como o “instrumento jurídico vocacionado a demonstrar a ocorrência ou não de determinado fato e suas circunstâncias, tendo ele ocorrido total ou parcialmente em meios digitais, ou, se fora deles, esses sirvam como instrumento para sua demonstração” (THAMAY; TAMER, 2020).

A adoção dessa tecnologia tem sido amplamente prestigiada por magistrados e desembargadores de diversos Tribunais de Justiça do Brasil, que já se manifestaram favoravelmente ao uso de videochamadas como meio de comprovação da ciência da contratação pelo aderente e do cumprimento do dever de informação por parte dos bancos. Veja-se: essa inovação não apenas reforça a segurança jurídica das transações, mas também contribui para a redução de litígios, vez que serve como prova robusta e irrefutável da manifestação da vontade e do consentimento informado do consumidor.

Além disso, as provas audiovisuais alinham-se aos princípios basilares da boa-fé contratual e da cooperação entre as partes, previstos no ordenamento jurídico. Ao exigir que as partes ajam com transparência e lealdade durante a formação e execução dos contratos, a boa-fé objetiva é atendida com precisão por esse mecanismo de validação do negócio jurídico, que garante ao consumidor o pleno conhecimento das condições contratuais antes de acedê-las.

Outro aspecto relevante é o potencial dessa tecnologia para mitigar o ajuizamento de ações em massa e coibir o enriquecimento ilícito. A gravação audiovisual, ao documentar todo o processo de contratação, dificulta a alegação de desconhecimento, contribuindo para a justiça e a efetiva equidade nas relações consumeristas.

De fato, a incorporação de provas audiovisuais no processo de contratação bancária configura um avanço substancial no enfrentamento das fraudes e na solidificação da segurança jurídica dos contratantes. Ao integrar tecnologia e Direito, as instituições financeiras não apenas resguardam seus próprios interesses, mas também reforçam a confiança de seus clientes, elemento essencial para a estabilidade e o funcionamento adequado do sistema financeiro.

A rigor, essa experiência também demonstra como a necessidade de se conceber abordagem multissetorial que envolva o Poder Judiciário, órgãos reguladores, instituições financeiras e a sociedade civil. Apenas com a coordenação de medidas eficazes será possível reduzir os efeitos da litigância predatória e garantir um ambiente jurídico hígido e equilibrado.

Se o crédito consignado representa uma alternativa de financiamento acessível e segura para milhões de brasileiros, o enfrentamento do avanço da litigância abusiva deve ser entendido como uma política de interesse social, para mitigar os riscos à sustentabilidade desse modelo e conter os custos excessivos para a sociedade, para que não se assista uma grave redução do acesso ao crédito.

Decerto, são dignas de nota algumas respostas já adotadas como contraofensiva à judicialização do crédito consignado: o CNJ tem investigado fraudes no setor e incentivado soluções extrajudiciais como forma de inibir a litigância predatória. Outrossim, conciliação prévia e a mediação têm sido fomentadas pela sua eficácia para evitar o aumento excessivo de demandas no Judiciário (VALOR, 2024).

Com razão, os Tribunais brasileiros começam a adotar iniciativas para coibir abusos, como a aplicação de penalidades mais rigorosas para litigantes contumazes. Essas ações podem contribuir para reduzir o impacto econômico da litigância predatória e preservar a estabilidade do crédito consignado.

No combate à litigância abusiva, não é possível abdicar da obrigatoriedade da tentativa de resolução extrajudicial antes do ajuizamento das ações. Representa prática louvável do Judiciário nessa direção a decisão do TJ/MG, de outubro de 2024, no âmbito do IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 1.0000.22.157099-7/001, ao considerar obrigatória a tentativa de resolução extrajudicial antes de se iniciar a ação judicial. Trata-se de avanço significativo para a redução da judicialização desnecessária.

Convém rememorar que a tentativa de resolução extrajudicial pode ser comprovada pelo registro do acesso a canais oficiais, aos SAC – Serviços de Atendimento ao Cliente, aos Procon – Programas de Proteção e Defesa do Consumidor, ao Banco Central ou a plataformas digitais como o Consumidor.Gov e Reclame Aqui. A tentativa prévia pode ser dispensada apenas em situações de risco iminente de perecimento do direito ou urgência. Diante de tantos meios de composição do litígio, a ausência de prova da tentativa prévia de solução conduz prontamente ao indeferimento da petição inicial e à imediata extinção do processo sem julgamento de mérito.

De igual forma, não se deve olvidar de que há escritórios especializados no combate à litigância predatória, que desempenham papel fundamental no equilíbrio do sistema jurídico, contribuindo para a redução da judicialização excessiva e efetiva proteção dos consumidores contra fraudes. Por meio de ações estratégicas, como a análise criteriosa de processos, a atuação na formação de sólida jurisprudência contra litigantes abusivos e a conscientização dos magistrados sobre as consequências desairosas decorrentes dessas práticas, tais escritórios contribuem decisivamente para o fortalecimento da previsibilidade e da segurança jurídica no setor de crédito.

O acompanhamento processual estratégico, a formulação de teses defensivas inovadoras e o uso de tecnologia para mapear padrões de litigância predatória também são atividades de destaque nesses escritórios, que constituem células de advogados com expertise na investigação, identificação e persecução de fraudes processuais.

Enfim, somente a articulação entre diversos agentes em busca da repressão da judicialização predatória será capaz de preservar os benefícios do crédito consignado, como solução eficaz para a estabilidade financeira dos consumidores, e de resgatar a função do advogado como profissional “indispensável à administração da justiça”, na sábia dicção do art. 133 da Constituição Cidadã.

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Márcio Aguiar  Márcio Aguiar – Sócio Fundador da Corbo, Aguiar & Waise Advogados. Especialista em Direito Empresarial. Ex-Diretor Jurídico da Câmara de Comércio Luso Brasileira. Co-Autor da Enciclopédia de Direito do Desporto.

Fonte: Migalhas – https://www.migalhas.com.br/depeso/426492/o-credito-consignado-e-os-efeitos-da-litigancia-abusiva