Na coluna de 16 de março, iniciamos o exame das repercussões do novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor. Continuamos, agora, a destacar alguns aspectos que merecem atenção, não sem antes registrar que o exato sentido e o alcance de suas normas devem passar — como é próprio das novidades legislativas — por um razoável período de maturação doutrinária e jurisprudencial.
As demandas judiciais que envolvem relações de consumo respondem por significativo contingente dos processos em curso no país. As razões para isso se pode identificar em várias frentes. Não falta quem se refira a certa facilidade de litigar no Brasil. Em termos de Direito Comparado, isso não é falso. Entretanto, é evidente que a realidade de demandantes contumazes — no Direito do Consumidor identificados por conhecidos fornecedores habitués do foro — faz com que a pouca efetividade das decisões ou a demora na solução dos casos sejam ponderadas na estratégia empresarial, como alternativa espúria à devida elevação dos padrões de qualidade e atendimento oferecidos, evitando a necessidade de recurso ao Poder Judiciário.
Toda nova legislação processual é vocacionada à racionalização das situações de conflito. O novo Código de Processo Civil orienta-se para além, confessando um projeto também para evitá-los. Daí a atenção aos instrumentos de conciliação ou mediação, e mesmo os instrumentos de resolução de demandas repetitivas. Também assim a pretensão de oferecer segurança e previsibilidade sobre o modo como serão tomadas as decisões. Como é próprio de legislação original, já agora se multiplicam as críticas ao texto normativo. Algumas já bastante divulgadas, como no caso da previsão de ponderação prevista no artigo 489, parágrafo 2º, do novo CPC. Outras são mais advertências para o intérprete, que precisará determinar suas possibilidades e limites, como é o caso do exato significado que se pretenda dar à ideia de colaboração processual (artigo 6º), ou ainda sobre o onipresente princípio da boa-fé (artigo 5º e 489, parágrafo 3º), agora também nos domínios do processo.
Sobre as linhas em que se tocam o novo CPC e o Direito do Consumidor, merecem atenção o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e a disciplina da resolução de demandas repetitivas, tanto por intermédio do incidente específico criado para esse fim, quanto pelas regras relativas aos recursos especial e extraordinário repetitivos.
Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Um dos temas mais controvertidos no plano da responsabilidade patrimonial diz respeito à extensão dos efeitos das obrigações da pessoa jurídica a seus sócios ou administradores. A desconsideração da personalidade jurídica foi recebida pelo Direito brasileiro por intermédio da doutrina especializada, com posterior consagração legislativa (artigo 50 do Código Civil). Recebeu, entretanto, do Direito do Consumidor, disciplina específica, tornando mais abrangente as hipóteses que a autorizam, conforme previsto no artigo 28 do CDC. Atenção merece também o parágrafo 5º do artigo 28 do CDC, que dispõe: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
As discussões sobre a aplicação da norma do CDC sempre tiveram presente o reclamo por maior previsibilidade quanto ao deferimento da desconsideração e extensão dos efeitos das obrigações sobre o patrimônio dos sócios ou administradores. A definição de um procedimento específico para a desconsideração da personalidade jurídica, como faz CPC/2015, a rigor está de acordo com a diretriz de proteção da confiança das partes (não surpresa), prevista nos seus artigos 9º e 10 da nova lei processual.
O artigo 133 do CPC/2015 refere: “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”. De sua interpretação resulta que não poderá ser decretada de ofício pelo juiz. Segundo essa visão, apenas quando houver pedido da parte interessada ou do Ministério Público poderá ser deferida a desconsideração, o que também se aplica à desconsideração inversa, pela qual a pessoa jurídica possa vir a responder por obrigações contraídas pelos sócios (artigo 133, parágrafo 2º). Registre-se, contudo, que é dispensada a instauração do incidente se houver pedido com este fim já na petição inicial, hipótese em que o sócio ou a pessoa jurídica serão citados para participar da ação (artigo 134, parágrafo 2º, CPC/2015).
Nas causas que tenham por objeto relação de consumo, pode, eventualmente, se estabelecer controvérsia sobre a aplicação do artigo 133 do CPC/2015, no ponto em que ele impede a decretação ex officio da desconsideração da personalidade jurídica[1], em especial, com o fundamento da ordem pública constitucional de que se reveste o CDC[2]. Tenha-se em conta, no entanto, que o propósito da norma é o de assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa de quem possa vir a responder com seu patrimônio pelas obrigações contraídas por outrem. A locução “o juiz poderá”, definida no artigo 28 do CDC, milita em favor da possibilidade da decretação de ofício. Contudo, por mais discutível que seja a solução processual, o fato é que, ao definir, a norma processual, dado procedimento, este deverá ser observado na aplicação do direito material. De qualquer sorte, note-se que, mesmo se admitindo a decretação de ofício da desconsideração, isso não elimina o dever de assegurar a manifestação prévia à decisão, das partes que venham a sofrer seus efeitos. É o que resulta do artigo 10 do CPC/2015 (“O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”).
O efeito da instauração do incidente será a suspensão do processo e citação do sócio ou da pessoa jurídica para se manifestar e requerer provas. Concluída a instrução do incidente, será proferida decisão interlocutória, da qual cabe recurso (artigo 136 CPC/2015). Acolhido o pedido de desconsideração, define o artigo 137 do CPC/2015 que “a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.
Instrumentos de resolução de demandas repetitivas
São essencialmente dois os instrumentos previstos pelo novo CPC para a resolução de demandas repetitivas: o incidente de resolução de demandas repetitivas e a disciplina dos recursos especial e extraordinário repetitivos. Ambos têm larga repercussão nas demandas relativas ao Direito do Consumidor.
O incidente de resolução de demandas repetitivas, com notada inspiração em solução do Direito alemão (Musterverfahren), mas também presente em outros sistemas (como a Inglaterra), caracteriza-se pela cisão da competência sobre a causa, de modo que o tribunal em que instaurado o incidente decide a tese prevalente. Pressupõe a existência de repetição de processos em curso, com risco de ofensa à isonomia em face de decisões contraditórias. E, deste modo, oferece aos tribunais em geral (tribunais de Justiça dos estados e tribunais regionais federais, entre outros) a possibilidade de uniformizar seu entendimento sobre causas controvertidas, permitindo maior estabilidade e eficiência na solução das demandas que lhe são submetidas.
Estabelece o artigo 976 do Código de Processo Civil de 2015: “Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.
Exige-se que haja processos repetitivos com uma mesma questão de direito controvertida[3], não mera expectativa quanto à multiplicação de demandas. Por outro lado, não cabe o incidente de resolução de demandas repetitivas quando já houver sido afetado, por um dos tribunais superiores, recurso para definição da tese sobre mesma questão de direito repetitiva, caso do recurso especial e do recurso extraordinário repetitivos (artigo 976, parágrafo 4º).
A admissão do incidente determina a suspensão, pelo relator, dos processos pendentes que tramitem no âmbito de competência do tribunal que o instaurar. Admite a intervenção de amicus curiae e de assistente simples (artigo 983), devendo se manifestar também o Ministério Público, e deverá ser julgado no prazo de um ano, após o qual deixam de estar suspensos os processos relacionados (artigo 980).
Como efeito do julgamento do incidente de recursos repetitivos, a tese jurídica a qual se refira será aplicada “a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região”; e “aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal” (artigo 985). A decisão, contudo, poderá ser revista, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública (artigo 986). Note-se que o precedente que resulta da decisão torna-se obrigatório, inclusive para os órgãos do próprio tribunal que prolatou a decisão (vinculação horizontal). Da decisão do incidente, cabe recurso especial e extraordinário, o qual terá efeito suspensivo, e cuja decisão pelo STJ ou pelo STF, será aplicada a todos os processos individuais e coletivos que tenham por objeto a mesma questão de direito (artigo 987). O recurso extraordinário, de sua vez, terá presumida a repercussão geral da questão constitucional discutida (artigo 987, parágrafo 2º).
Já em relação aos recursos especiais e extraordinários repetitivos, o CPC/2015 unifica o procedimento para afetação e julgamento, feitos sob a égide do CPC revogado, a partir do que estabeleciam os artigos 543-B e 543-C, e detalhado por resoluções dos respectivos tribunais.
As preocupações já existentes no sistema do código revogado se renovam. A principal diz respeito à escolha do recurso a ser afetado e sua capacidade de demonstrar todos os aspectos que envolvem o objeto da discussão. Há também preocupação com a própria qualidade da representação das partes. Quando se trata de relações de consumo, muitas vezes estão envolvidos fornecedores litigantes habituais, assistido por especialistas na controvérsia em questão, e de outro lado centenas ou milhares de consumidores, em causas das quais apenas um recurso será selecionado e afetado para decisão. Isso pode prejudicar sensivelmente a paridade de armas (artigo 7º CPC/2015), considerando que a defesa do contingente de consumidores estará confiada, no caso, ao advogado do consumidor no recurso selecionado e aos amici curiae, que apenas tratarão dos aspectos controvertidos indicados pela corte.
O artigo 1.037 do CPC/2015 define que o relator, na decisão que afetar o recurso, dentre outras providências “identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento” e “determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”. A preocupação do legislador ao determinar que a decisão de afetação deva identificar com precisão a questão submetida a julgamento, veda ao órgão jurisdicional deliberar sobre questão não delimitada nessa decisão (artigo 1.037, parágrafo 2º, CPC/2015). Há na regra o sentido de proteção da confiança em relação à estabilidade da jurisprudência, evitando surpreender aquele que — confiando na decisão de afetação — deixa de mobilizar-se na defesa de seu interesse, sendo surpreendido pelo tribunal. É o que fundamenta, em parte, as críticas eloquentes em relação à decisão do Recurso Especial 1061530/RS, que deu origem à Súmula 381 do STJ, definido que, “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”[4].
Porém, como afirmei no princípio, a exata dimensão das normas do novo CPC não decorrerá exclusivamente do seu texto, senão da interpretação e aplicação que se fizer dele. Em especial, tendo em conta a concordância de suas regras, e os justos reclamos de previsibilidade e segurança das decisões judiciais, com a necessária efetividade dos direitos do consumidor, conforme assegurado pela Constituição da República.
Post scriptum: De 1º a 4 de maio, haverá o XIII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em Foz do Iguaçu (PR), organizado pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). O evento reunirá cerca de cem palestrantes, especialistas nos vários temas do Direito do Consumidor, oriundos de mais de dez países, naquele que já é reconhecido com um dos principais eventos acadêmicos sobre o tema no mundo. Faço o convite aos leitores da coluna para que participem. Mais informações no site do Brasilcon: www.brasilcon.org.br.
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Comentário ao art. 134. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 426-427. Da mesma forma: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 252.
[2] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 5ª ed. São Paulo: RT, 2014.
[3] Veja-se: MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante do projeto do CPC: a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. In: DIDIER JR., Fredie; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; NUNES, Dierle; MEDINA, José Miguel Garcia; Fux, Luiz; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Novas tendências do processo civil. Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 809-871.
[4] STJ, 2ª Seção, j. 22.4.2009 DJe 5.5.2009.
Fonte: Conjur