Os juizados especiais foram criados com o objetivo de concretizar o amplo acesso ao Judiciário previsto na Constituição Federal de 1988, permitindo às camadas mais populares da sociedade levar suas demandas a um órgão judicante competente para resolver seus conflitos de forma célere, informal e simples, sempre buscando, primordialmente, uma solução consensual.
De início, os juizados cumpriram muito bem seu papel, alcançando excelentes resultados na conciliação e na solução mais ágil dos litígios que lhes foram apresentados, em comparação com a chamada Justiça Comum ordinária.
No entanto, com o passar dos anos, o sucesso dos juizados neste aspecto, levou a uma crescente demanda e acúmulo de processos, fato este decorrente da ampliação da sua competência, notadamente com o advento dos juizados especiais da Fazenda Pública, bem como em razão da proliferação de “lides fantasmas” e causas fabricadas.
No que se refere à criação dos juizados especiais da Fazenda Pública, a Lei 12.153/09, além de expandir a competência dos juizados para causas de até 60 salários-mínimos (quando até então o teto era de 40 salários mínimos), trouxe para o sistema dos juizados especiais causas de extrema complexidade, envolvendo questões relativas a servidores e à própria administração pública, nas quais as normas municipais, estaduais e federais sobre o tema invariavelmente dependem da interpretação dos tribunais superiores (STF e STJ), dada a repercussão geral da matéria, o que é totalmente incompatível com a simplicidade e informalidade dos juizados.
Nesse aspecto, a inovação legislativa foi tão prejudicial aos juizados especiais que repercutiu até mesmo para complicar a simplicidade do seu procedimento, haja vista que o novo Código de Processo Civil de 2015, já em razão de tais matérias de repercussão nacional, inseriu o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) como aplicável às causas dos juizados especiais (artigo 985, I, NCPC), as quais deverão permanecer suspensas e paralisadas, nos moldes do artigo 982, I, do NCPC, até que o incidente seja julgado pelos também já superlotados Tribunais Superiores. Este é mais uma ameaça real e atual à necessária e indispensável celeridade no âmbito dos juizados especiais.
Não custa lembrar que o procedimento recursal extremamente simplificado da Lei 9.099/95 e, exatamente por isso, muito mais célere, permite apenas dois recursos: os embargos de declaração (para o próprio juiz prolator da decisão) e o recurso inominado para uma Turma Recursal composta por três juízes de mesma instância do Julgador monocrático que proferiu a sentença.
Ainda no âmbito dos juizados da Fazenda Pública, surgem as demandas de saúde, nas quais passou-se a admitir o processamento de qualquer causa apenas com base no seu valor, sem levar-se em consideração a complexidade das provas a serem produzidas neste tipo de processo que, muitas vezes, envolve pareceres médicos contraditórios, inovações farmacológicas e procedimentais quanto ao tipo de tratamento e, até mesmo, fraudes e ilicitudes que acabam por impôr a análise de circunstâncias específicas que o julgador do juizado não pode se socorrer da perícia indispensável para a solução da lide.
No âmbito cível, também os juizados vem sendo utilizados para dirimir questões que demandam elevada complexidade probatória tais como a discussão acerca dos contratos bancários e juros aplicáveis, o reajuste de planos de saúde, a ocorrência de empréstimo disfarçado de cartão de crédito consignado e suas consequências monetárias, todos estes exemplos de causas que demandam perícias contábeis complexas e incompatíveis com o que preconiza a Lei 9.099/95.
Mesmo diante de todo esse quadro, há quem deseje ampliar ainda mais a competência dos Juizados Especiais, tanto assim o é que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.696/01, do deputado Pedro Fernandes (PTB-MA), e outros cinco apensados, visando alterar Lei 9.099/95 para que ela se aplique a ações como as de investigação de paternidade, de separação judicial, de pensão alimentícia, de divórcio, de regulamentação de visita, de guarda dos filhos, entre outras.
Afora as causas fazendárias que vêm abarrotando os juizados especiais de todo o Brasil e a grave ameaça que representa a inserção das causas do Direito de Família no âmbito dos juizados, o sistema ainda tem que lidar com as “lides fantasmas” e com as causas fabricadas.
Tenho qualificado como “lide fantasma” aquela em que, efetivamente, não há litígio real, mas a parte demandada se utiliza do Poder Judiciário apenas para protelar o reconhecimento do direito da parte autora ou para “não gerar o precedente” e evitar outros casos semelhantes.
Com efeito, são inúmeras as causas que chegam diariamente aos juizados em que já há até mesmo o reconhecimento administrativo pela empresa ou ente estatal daquela ocorrência ou fato jurídico que lhe é desfavorável, mas a parte prefere litigar até o fim e até o último recurso possível, ao invés de conciliar e resolver consensualmente o litígio, como forma de postergar economicamente o prejuízo dali decorrente.
Já as causas fabricadas chegam em lotes imensos de processos, geralmente trazidas por poucos escritórios de advocacia que praticam captação de clientela em massa e dizem respeito a uma tese jurídica “fabricada” com o objetivo de enriquecer ilicitamente partes e advogados, independentemente da plausibilidade daquele pedido.
Para tanto, quem utiliza desse tipo de artifício, aposta na desorganização das empresas de porte nacional e na sua incapacidade de gerir adequadamente os processos judiciais e as contratações efetivadas pelos mais diversos meios no amplo território brasileiro, fazendo com que o ajuizamento maciço de ações em todo o país, acabe por dificultar ou impedir a defesa consistente das teses levantadas.
As causas fabricadas, tão logo obtenham uma decisão favorável em um juízo, replicam-se em outras comarcas de forma itinerante, levando as empresas a firmarem acordos, ainda que não se tenha nenhuma plausibilidade do direito, para evitar novas condenações em valores superiores.
Se só isso não bastasse, há ainda o registro das mais diversas fraudes envolvendo o ajuizamento de ações nos juizados especiais, ao ponto Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ter criado uma comissão em conjunto com a seccional da OAB local para identificar esses casos que envolvem endereços falsos, CPFs duplicados, compras com identificação falsa, notas fiscais adulteradas utilizadas como prova, falsos furtos de bagagens, bilhetes de viagens duplicados, dentre outras tantas registradas em todo o país.
O juiz de Direito coordenador das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e Fazendárias do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Alexandre Chini Neto, ao tratar do tema no Encontro Nacional dos Corregedores de Justiça realizado em Minas Gerais no ano de 2017, explicitou algumas dessas práticas:
“Descobrimos, por exemplo, uma advogada que é parte, autora em 277 ações e o marido dela tem 150 ações. No Rio, agora há como identificar o litigante e quantas ações ele tem no Judiciário. Ou ainda pelo objeto do litígio, como por exemplo, um relógio Rolex de um homem foi objeto de 34 ações com uma mesma nota fiscal ou um cidadão que comprou mais de 25 esteiras de academia e pagava com boleto falso e ganhou mais de 300 mil de indenizações.”
Do cotidiano forense, também colhemos outros exemplos que se assemelham a fraudes ou tentativas de fraudes tais como: a) fragmentação de ações entre as mesmas partes decorrentes da mesma relação negocial, em busca da maximização do ressarcimento; b) alegações vazias de perda de chip ou troca de plano de empresas de telefonia móvel, quando em verdade a contratação se deu por meio de contato telefônico; c) negativa genérica de ausência de contratação com empresa/instituição financeira que inscreveu débito não reconhecido em cadastro de inadimplentes seguida de pedido de desistência da ação quando a parte demandada apresenta prova da existência da contratação; d) ajuizamento da mesma demanda em várias comarcas diferentes, pedindo desistência naquelas em que a defesa for mais consistente.
Diante de todos esses problemas, a consequência mais grave é um sistema dos juizados especiais cada vez mais abarrotado de processos complexos e fraudulentos e no qual os juízes não conseguem observar os critérios orientadores do artigo 2º da Lei 9.099/95 que regularam o seu funcionamento e que são a razão de sua existência.
Para reverter esse quadro, é preciso que os juízes que atuam nos juizados sejam rígidos quanto à análise da complexidade da prova a ser produzida, extinguindo os casos que não são congruentes com a simplicidade do sistema.
É importante, também, que sejam desenvolvidas ferramentas nos sistemas de processos eletrônicos para identificar as demandas repetitivas e alertar automaticamente os casos em que há causas fabricadas, seja pela repetição dos litigantes ou seus advogados, seja pela temática envolvida.
Ao mesmo tempo, é preciso que sejam combatidas e barradas as iniciativas legislativas que visam a aumentar a competência dos Juizados Especiais, sob pena de inviabilizar a celeridade necessária no seu procedimento, em face da elevação descontrolada da demanda.
Por fim, é indispensável que o Poder Judiciário como um todo, com o apoio do Ministério Público e da própria OAB estejam vigilantes para impedir que o acesso à justiça, tão relevante e necessário a todos, não seja utilizado de forma abusiva para abrigar fraudes, causas fabricadas e lides fantasmas.
Fonte: ConJur