Quase diariamente recebo sugestões de pautas de leitores inconformados com decisões judiciais, questões de concursos, falas de autoridades públicas do direito, absurdos dogmáticos, etc. Nesta semana, recebi muitas denúncias epistêmicas sobre, de novo, ainda, sempre, decisões (novíssimas, dois mil e dezenove) fundamentadas no velho (mas não bom, só velho) “livre convencimento”.
Sim, o “livre convencimento” (“motivado”) como razão, como fundamento para decisão judicial. De novo, ainda, sempre.
As decisões são, quase todas, semelhantes. Por todas, tem uma novissima, de duas semanas atrás, do STJ. Vejam:
(…) O CPC/2015 manteve em sua sistemática o princípio da persuasão racional ou do livre convencimento motivado (…) conforme o disposto nos artigos 370 e 371 (…)”.
Procurei e não encontrei nada disso no CPC. Só se sabe que alguém perdeu um direito com base no livre convencimento que, “taxativamente”, não está previsto em lei. Isso acontece com milhares de pessoas. Brasil a fora. Decisão contra legem. Minha crítica nem é ao juiz específico, ao tribunal específico. É aquela coisa: o problema não é o mensageiro. Não é o jogador. O problema é a mensagem, o problema é o jogo, cujas regras não são cumpridas.
Já escrevi uma meia centena (acho que não é hipérbole) de colunas sobre esse equívoco epistêmico-filosófico que é o livre convencimento. Fiz lobby epistêmico para arrancá-lo do CPC de 2015. E consegui êxito junto ao Deputado Paulo Teixeira, para retirar o foco da inflamação epistêmica do CPC-2015. Só que a doença volta. O tal livre convencimento volta.
É a banalidade do livre convencimento. Princípio da persuasão racional? Mais um “princípio” para a coleção pamprincipiologista. Por que isso seria um princípio? E o que tem ou teria a ver com o livre convencimento?
Como justificar, na democracia, o livre convencimento ou a livre apreciação da prova? Se democracia, lembro Bobbio, é exatamente o sistema das regras do jogo, como pode uma autoridade pública, falando pelo Estado, ser “livre” em seu convencimento? Pergunto: A sentença (ou acordão), afinal, é produto de um sentimento pessoal, de um subjetivismo ou deve ser o resultado de uma análise do direito e do fato (sem que se cinda esses dois fenômenos) de uma linguagem pública e com rigorosos critérios republicanos? Porque a democracia é o respeito às regras do jogo.
Porque a intersubjetividade impõe constrangimentos. E o Direito é a intersubjetividade institucional por excelência: uma prática interpretativa, intermediada pela linguagem pública. Nada é mais antitético ao Direito que o livre convencimento.
Mas ele volta. De novo, ainda, sempre. E eu sou obrigado a voltar também. Porque são esses meus trópicos utópicos (para usar a expressão de Eduardo Giannetti): o dia em que a comunidade jurídica vai olhar para trás e dizer – “Meu Deus… em 2019, juízes escolhiam antes e fundamentavam depois, com base num negócio a que chamavam de ‘livre convencimento’… como é que pode?”
O “livre convencimento” de Otelo, que buscava a “verdade real”, matou a coitada da Desdêmona. Ele estava livremente convencido de que fora traído. Por aqui, não deixemos que ele mate o Direito. Morto o Direito, morre a democracia.
Por fim, para arrematar, já que a decisão (que se repete em dezenas ou centenas ou milhares de decisões) estabeleceu que o CPC 2015 “manteve” (sic) o livre convencimento, permito-me trazer, de novo, a justificativa da emenda do deputado Paulo Teixeira (ver texto sobre isso aqui) que, vencedora, suprimiu o livre convencimento.
Ajudei a redigir a justificativa (no caminho para o parlamento, conversei, por telefone, com Marcelo Cattoni e Dierle Nunes, que me assessoram para a conversa com Paulo Teixeira, Fredie Didier e Luiz Henrique Volpe). Fui testemunha ocular da história (invoco o testemunho de Fredie e Luiz Henrique). A mesma emenda foi feita — ainda não votada — no projeto do CPP e que faz menção à emenda feita no CPC (ver aqui). Um importante histórico do CPC pode ser visto neste texto de Rafael Niebuhr Maia de Oliveira e Welligton Jacó Messias e publicado por Renan Kfuri Lopes. De todo modo, eis:
“embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.”
Pergunto, então: como sustentar decisões como a aqui comentada? Como sustentar decisões como as que dizem que “o CPC 2015 em nada alterou o entendimento prevalente de que o juiz pode a analisar as provas livremente”?
Insisto nisso porque não é possível que se afronte a lei desse modo. Não é admissível que agravos e embargos sejam derrubados com base em um argumento que não foi albergado pelo legislador. Ou decisões sejam sustentadas no livre convencimento. Não é porque eu quero que seja assim. É o texto legal e a clara intenção do legislador. E mesmo que não houvesse a “intenção” do legislador, já bastaria a supressão da palavra “livre” (em vários dispositivos). Uma palavra na lei faz ou não faz diferença?
De qualquer maneira, com meu otimismo metodológico e com minha epistemologia do zelo, sugiro que escutemos e adotemos uma tese de Christian Baldus (introduzido e estudado no Brasil por Otavio Luiz Rodrigues Jr) sobre interpretação histórica negativa:
determinado comando ou certa hipótese de incidência não são aceitáveis ou compreensíveis porque o legislador, se os desejasse, tê-los-ia incluído no texto de lei.
No caso, ocorreu mais do que isso. Ocorreu a explicitação do objetivo da alteração legislativa, com o que está vedada interpretação que transforme o texto em seu contrário.
Mais ainda do que isso, toda a incidência da palavra livre foi suprimida também em outros artigos do CPC-2015, conforme explicito em meu comentário ao artigo 371 do CPC, no livro Comentários ao CPC, editora Saraiva, junto com Dierle Nunes, Leonardo Cunha e Alexandre Freire).
Falta-nos, ainda, o constrangimento intersubjetivo para que as subjetividades dos ditos intérpretes, maquiadas pelo livre convencimento motivado, salte aos olhos como singularmente aberrante em nossas práticas e costumes.
Numa palavra: essa questão do “livre convencimento” é algo que simboliza a resistência de setores do direito brasileiro (inclui-se parte expressiva da doutrina processual) em abandonar as velhas teses protagonistas e instrumentalistas que atravessaram o século XX. O juiz Antônio Carvalho, em brilhante conferência de abertura do Congresso da ABDPRO em Curitiba, dia 19 último, deixou a todos os presentes impressionados pelo modo lúcido com que tratou dessa temática — os malefícios do instrumentalismo e do protagonismo. A propósito: parabéns a toda a ABDPRO — resistência contra o arbítrio processual.
Vejam, finalmente, que nem entrei na seara filosófica para analisar o livre convencimento. Se em termos de teoria da democracia e teoria processual ele não se sustenta, o que dirá se analisarmos o conceito à luz dos paradigmas filosóficos? Mas isso já fiz em dezenas de outros textos, como em O Que é isto — Decido conforme a Consciência, agora traduzido e adaptado para a língua espanhola sob o título La Llamada Conciencia de Los Jueces, da Editora Tirant Lebranch, de Madrid.
Fonte: ConJur