O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) trouxe em seu artigo 10 o chamado princípio da não surpresa: o juiz não poderá decidir com base em fundamento sobre o qual não se tenha dado às partes a oportunidade de se manifestar, mesmo que se trate de matéria que deva ser decidida de ofício.
O artigo 7º dispõe sobre o tema ao definir que é assegurada às partes paridade de tratamento, tendo o juiz o importante papel de zelar pelo efetivo contraditório. Já o artigo 9º define que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”.
Nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão, ao proferir seu voto no REsp 1.755.266, a intenção do CPC/2015 foi “permitir que as partes, para além da ciência do processo, tenham a possibilidade de participar efetivamente dele, com real influência no resultado da causa”.
No mesmo voto, o magistrado destacou a preocupação latente do novo CPC com o princípio do contraditório, previsto no artigo 5º, LV, da Constituição de 1988. “Em busca de um contraditório efetivo, o normativo previu a paridade de tratamento, o direito a ser ouvido, bem como o direito de se manifestar amplamente sobre o substrato fático que respalda a causa de pedir e o pedido, além das questões de ordem pública, cognoscíveis de ofício, não podendo o magistrado decidir sobre circunstâncias advindas de suas próprias investigações, sem que antes venha a dar conhecimento às partes”, salientou Salomão.
Segurança jurídica
No STJ, o tema — que norteia a atuação de todo o Poder Judiciário — é frequente. Os julgamentos enfrentam a questão sob diversos aspectos, mas a intenção é sempre assegurar que todas as partes possam ser ouvidas e preservar, dentro dos ditames legais, os direitos e garantias fundamentais, inclusive a dignidade da pessoa humana — princípio legitimado tanto na ordem nacional quanto no plano internacional.
Conforme a própria Exposição de Motivos do CPC/2015, a função das normas sobre a não surpresa é garantir efetividade às garantias constitucionais, “tornando ‘segura’ a vida dos jurisdicionados, de modo que estes sejam poupados de ‘surpresas’, podendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta”.
Antes do CPC/2015
Embora o princípio da não surpresa tenha aparecido expressamente no ordenamento jurídico brasileiro com o CPC/2015, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no julgamento do REsp 1.725.225, votou pela possibilidade de sua aplicação em processos regidos pelo CPC/1973.
Acompanhando o voto do relator, a Terceira Turma reformou decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que havia considerado uma apelação deserta pelo fato de a complementação do preparo ter sido feita sem correção monetária. Para os ministros, o fato de não ter havido menção à necessidade de atualização monetária no despacho que determinou a complementação da taxa judiciária deu margem à surpresa processual.
Segundo Sanseverino, o artigo 10 do CPC/2015 não tinha correspondente no CPC/1973, mas mesmo assim “o princípio da não surpresa era possível de ser extraído daquele ordenamento processual, embora não com tamanha magnitude”.
O relator mencionou precedente de relatoria da ministra Nancy Andrighi (REsp 1.178.562) no qual a magistrada, rememorando voto de sua lavra no REsp 963.977, destacou que “o processo civil muito comumente vem sendo distorcido de forma a prestar enorme desserviço ao Estado Democrático de Direito, deixando de ser instrumento da justiça para se tornar terreno incerto, recheado de armadilhas e percalços, onde só se aventuram aqueles que não têm mais nada a perder”.
“A razoabilidade deve ser aliada do Poder Judiciário nessa tarefa, de forma que se alcance efetiva distribuição de justiça. Não se devem impor surpresas processuais, pois estas só prejudicam a parte que tem razão no mérito da disputa”, completou Nancy Andrighi.
Lei não invocada
Em 2017, ao julgar embargos de declaração no REsp 1.280.825, a 4ª Turma seguiu, por unanimidade, o entendimento da relatora, ministra Isabel Gallotti, no sentido de que aplicar lei não invocada pelas partes não ofende o princípio da não surpresa.
O caso envolveu o prazo prescricional em ação que discutia ilícito contratual. No julgamento da causa, foi aplicado o artigo 205 do Código Civil (prescrição em dez anos) — o qual não foi impugnado —, em vez do artigo 206, parágrafo 3º, V, também do CC (prescrição em três anos) — considerado pelas partes como o correto.
Em embargos de declaração, alegou-se que a decisão violou o princípio da não surpresa, ao adotar fundamento jamais cogitado por todos aqueles que, até então, haviam discutido a controvérsia.
Em seu voto, a ministra destacou que “o fundamento ao qual se refere o artigo 10 do CPC/2015 é o fundamento jurídico — circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação —, não se confundindo com o fundamento legal (dispositivo de lei regente da matéria)”.
Isabel Gallotti ressaltou ainda que a aplicação do princípio da não surpresa não impõe ao juiz o dever de informar previamente às partes os dispositivos legais passíveis de aplicação para o exame do processo.
Falta de intimação
No julgamento de agravo interno no AREsp 1.468.820, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a 3ª Turma decidiu que não existe afronta ao princípio da não surpresa quando o julgador, examinando os fatos expostos na petição inicial, aplica o entendimento jurídico que considerada coerente para a causa.
O agravo interno foi interposto contra decisão monocrática do relator que manteve acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) segundo o qual não é causa automática de nulidade — pois exige demonstração de prejuízo — a falta de intimação para prévia manifestação das partes sobre o pedido de inversão do ônus da prova.
A parte recorrente sustentou que houve violação dos princípios da não surpresa, do contraditório e da ampla defesa.
Ao analisar a alegada afronta ao princípio da não surpresa em virtude da ausência de intimação, Bellizze destacou que, conforme a jurisprudência do STJ, “a nulidade processual só deve ser declarada quando ficar comprovado prejuízo para a parte que a alega, em cumprimento ao princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo)”, podendo o juiz, depois de examinar os autos, aplicar o entendimento que considerar mais adequado ao processo.
Resultado previsto
No julgamento do RMS 54.566, a 2ª Turma entendeu que não cabe alegar surpresa se o resultado da lide se encontra previsto objetivamente no ordenamento disciplinador do instrumento processual utilizado e se insere no âmbito do desdobramento causal, possível e natural da controvérsia.
A decisão teve origem em mandado de segurança impetrado por uma candidata aprovada em concurso público com o objetivo de assegurar sua nomeação e posse em cargo de professora de língua portuguesa.
A impetrante alegou que foi aprovada em 19º lugar no concurso com 19 vagas, mas que foi preterida na assunção do cargo em favor do preenchimento do quadro com profissionais temporários admitidos mediante processo seletivo instaurado durante a validade do concurso.
No tribunal de origem, o processo foi extinto sem resolução do mérito, sob a fundamentação de que não constava dos autos prova pré-constituída do direito líquido e certo da impetrante. A candidata recorreu ao STJ, sustentando violação do princípio da não surpresa, já que não foi chamada a se manifestar sobre a decisão.
Ao proferir seu voto, o relator, ministro Herman Benjamin, afirmou que não se pode falar em surpresa no caso, visto que “a necessidade de prova pré-constituída do direito líquido e certo da impetrante era perfeitamente previsível e cogitável pelas partes, pois inerente a pressuposto formal contido no artigo 1º da Lei 12.016/2009, que rege a via estreita do mandado de segurança”.
“Cuida-se de simples exercício dos brocados iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi ius“, concluiu o relator.
Julgamento interrompido
Outra importante questão sobre o tema foi decidida em 2018 pela Corte Especial, que entendeu que o ministro que não acompanhou o início de um julgamento com sustentações orais não pode participar de sua continuação.
O colegiado fundamentou a decisão — que se deu por maioria, em questão de ordem nos EREsp 1.447.624 — no respeito aos princípios do juiz natural e da não surpresa nos julgamentos. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz, então presidente do STJ, afirmou que “o defensor deve saber, desde o início, qual é o quórum para o julgamento de seu processo”.
O ministro Raul Araújo, ao proferir seu voto, afirmou que, no devido processo legal, as partes não podem ser surpreendidas em relação ao andamento da ação. Da mesma forma — acrescentou —, a não surpresa também se aplica aos juízes que participarão do julgamento após o seu início. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.
Fonte: Conjur