Opinião – Penhora online e abuso de autoridade

Como já é de amplo de conhecimento na comunidade jurídica, a Lei nº 13.869/2019 disciplina os chamados crimes de “abuso de autoridade” e, na tentativa de zelar pelo escorreito exercício das funções públicas, tipifica variadas condutas cujo cometimento poderá ensejar a aplicação das penalidades nela previstas, dentre aquelas destacando-se o artigo 36 que trata do bloqueio desproporcional ou excessivo de ativos financeiros a respeito do qual algumas ponderações de ordem prática afiguram-se pertinentes. Não pretendemos aqui abordar tal crime mediante a tradicional decomposição do tipo penal com análise de seus elementos básicos (sujeito ativo, sujeito passivo, elemento objetivo, elemento subjetivo etc.) [1], senão apenas tecer algumas considerações que supomos relevantes para adequado esclarecimento de aspectos práticos relacionados ao crime em questão. Superada tal advertência, vejamos.

Dispõe o artigo 36 da Lei nº 13.869/2019 nos seguintes termos:

“Artigo 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:
Pena – detenção, de um a quatro anos, e multa”.

Basicamente, o tipo penal prevê como crime a decretação judicial de indisponibilidade de ativos financeiros em patamar exageradamente superior àquele estimado como suficiente para a satisfação da dívida, sem a devida correção do excesso após sua demonstração pela parte interessada. Fácil perceber tratar-se de previsão voltada notadamente às autoridades judiciárias, únicas competentes para a decretação de indisponibilidade de bens em processo judicial por conta da reserva de jurisdição existente em relação ao tema [2]. Outrossim, o excesso porventura incorrido há de ser exagerado, ou seja, manifestamente superior ao valor do débito cujo adimplemento se pretende, o que se infere da expressão “exacerbadamente” contida no tipo, pelo que não havendo cogitar-se de crime se o excesso for pequeno ou irrisório, atento ao princípio hermenêutico segundo o qual “a lei não contém palavras inúteis” (verba cum effectu sunt accipienda).

Conquanto de fácil configuração teórica, uma análise mais acurada da previsão normativa evidencia tratar-se de figura típica de difícil concretização, não só pela necessidade de dolo específico por parte do agente público competente (inteligência do artigo 1º, §1º, da Lei nº 13.869/19) como também pela necessária recalcitrância, pela autoridade, na correção de eventual excesso após alertada pela parte interessada, este último aspecto deveras relevante na medida em que, na prática, dificilmente uma omissão dessa ordem ocorreria, ao menos não sendo de nosso conhecimento situações dessa natureza nas milhares de execuções fiscais em que já atuamos. Vale dizer, nas vezes em que um bloqueio eletrônico de valores sobrevém em montante superior àquele correspondente ao quantum debeatur, difícil admitir como verossímil a hipótese em que mesmo após alertada de eventual excesso indevido a autoridade judiciária insistirá na manutenção do bloqueio excessivo apenas por perseguição, vingança, capricho ou qualquer outra motivação semelhante e passível de enquadramento na previsão do artigo 1º, §1º, da Lei nº 13.869/19, não sendo este, de fato, o perfil das autoridades judiciárias no cotidiano forense, necessário reconhecer.

Ao mencionar expressamente “ativos financeiros”, resta excluída da tipificação penal a constrição de outros bens diversos de tais ativos, de modo que não é qualquer excesso de penhora que poderá ensejar a caracterização do crime [3], senão apenas o excesso de constrição em face de dinheiro e outros ativos como, por exemplo, ações, títulos, cotas de fundos de investimentos, aplicações, criptomoedas [4] etc. Nessa perspectiva, as atenções se voltam sem dúvida alguma ao mecanismo amplamente conhecido como “penhora on line“, voltado à indisponibilidade de ativos financeiros de um devedor e que se caracteriza como modalidade preferencial de constrição de bens por inteligência do disposto na legislação federal vigente (LEF, artigo 11, I; CPC, artigos 835, I, 837 e 854) e consoante o entendimento jurisprudencial prevalente (vide: STJ, 1ª Seção, REsp 1.184.765/PA e REsp 1.337.790/PR — ambos recursos repetitivos), atualmente operacionalizado pelo “SisbaJud” que, lançado em 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em cooperação técnica com o Banco Central (BACEN) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), veio a substituir o antigo “BacenJud”, não mais em operação [5].

Uma primeira observação amparada naquilo que não raras vezes ocorre em variados processos consiste na hipótese em que, por alguma razão (ex: débito parcialmente sub judice em outro processo sem suspensão da respectiva exigibilidade) a autoridade judiciária resolve manter o um dado valor constrito que, posteriormente, se revela superior àquele ao final reputado como efetivamente devido. Tomando-se como parâmetro um processo executório fundado, portanto, em título executivo cujo crédito nele representado possui presunção de certeza e liquidez [6], força convir que ainda que o débito (comum ou fiscal) esteja sob discussão em outro processo judicial (ex: uma ação anulatória sem liminar), tecnicamente nada obsta a que o juízo da execução determine uma indisponibilidade de ativos no valor que naquele momento se revela devido e exigível, isto é, se revela presumidamente líquido e certo, ainda que posteriormente se apure um excesso passível de redução ou ajuste sem que, entretanto, se possa acoimar de penalmente ilícita a constrição anteriormente realizada. Reforça nosso entendimento a noção de ato jurídico perfeito — do qual o ato processual é uma categoria — bem como o disposto no artigo 4º do Código Penal [7], em função do qual não se poderá cogitar qualquer crime por parte da autoridade judiciária se no momento da conduta por ela praticada a medida processual revelou-se plenamente legítima à luz dos elementos de análise então disponíveis.

Do mesmo modo, não se poderá acoimar de indevido um bloqueio que, impugnado pelo devedor, vem a ser objeto de apreciação judicial e mantido pela autoridade judiciária em decisão devidamente fundamentada que, no entanto, vem a ser posteriormente reformada pela segunda instância por alguma razão dissociada daquela tomada em consideração pelo juízo de primeiro grau, e isso porque se devidamente explicitadas as razões de convencimento da autoridade para manutenção do bloqueio no montante tal qual constrito, eventual divergência de entendimento não terá o condão de tornar ilícita a decisão originária porventura reformada, não só pela natural amplitude da argumentação jurídica [8] como também por inteligência do artigo 1º, §2º, da Lei nº 13.869/19, que veda o chamado “crime de hermenêutica” nos seguintes termos: “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Sob tal perspectiva, resta preservada a liberdade cognitiva e decisória da autoridade judiciária e de conseguinte excluída a tipicidade penal, sem prejuízo de eventual caracterização de abuso diante de uma interpretação teratológica ou patentemente descabida.

Outra situação bastante comum, sobretudo nas execuções fiscais, é aquela em que num dado processo sobrevém o bloqueio eletrônico de valores em patamar superior — às vezes, bastante superior — ao valor do débito em cobrança naquele específico processo, mas o devedor possui diversos outros débitos perante o mesmo credor distribuídos em outras ações em trâmite regular, perante o mesmo ou perante juízos diferentes. Nestas situações, uma análise mais apressada poderia sugerir um excesso que, por ser meramente aparente, jamais poderá ensejar a caracterização do crime do artigo 36 da Lei nº 13.869/19, ainda que a parte devedora alegue suposto excesso na constrição judicial em relação ao débito exequendo, e isso porque um bloqueio ou penhora de valores num dado processo garante não apenas o débito ao qual se refere diretamente, mas todo o passivo ativo e exigível em face do devedor, destacando-se neste mesmo sentido as lições de consagrada doutrina sobre o tema para a qual: “uma única penhora garante todas as execuções contra o mesmo devedor, ainda que o montante do crédito fazendário esteja distribuído entre vários processos de execução fiscal” [9].

Portanto, a análise do excesso ou não da constrição judicial de ativos financeiros deverá tomar como parâmetro não só o valor do específico débito em execução, mas o valor de todo o passivo ativo e exigível naquele momento por imperativos de efetividade da tutela jurisdicional executória e garantia do interesse do credor, o que no específico caso das execuções fiscais encontra amparo na inteligência do artigo 28 da Lei nº 6.830/80 — na hipótese de execuções apensadas — e no artigo 53, §2º, in fine, da Lei nº 8.212/91 — independente de eventual apensamento —, bem como na jurisprudência do col. Superior Tribunal de Justiça (vide e.g. REsp 1.319.171/SC, AgRgREsp 1.414.778/SP e AgInt-REsp 1.736.354/SC) de cujos precedentes se destaca o seguinte como possível leading case sobre o tema:

“EXECUÇÃO FISCAL. PRINCÍPIO UNIDADE DA GARANTIA DA EXECUÇÃO. ARTIHO 28 DA LEI 6.830/80. LIBERAÇÃO DE PENHORA. EXISTÊNCIA DE OUTRAS EXECUÇÕES CONTRA O MESMO DEVEDOR. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 53, §2° DA LEI 8.212/91. (…). Ainda que diante de pagamento integral logo após a citação, os bens penhorados liminarmente não devem ser liberados; caso haja outras execuções pendentes, é razoável admitir que o excesso de penhora verificado num processo específico também não seja liberado quando o mesmo devedor tenha contra si outras execuções fiscais não garantidas. O §2° do artigo 53 da Lei 8.212/91 vem em reforço do princípio da unidade da garantia da execução, positivado no artigo 28 da LEF” (STJ, 2ª T., REsp 1.319.171/SC, DJe 11.09.2012).

O entendimento acima exposto afigura-se consentâneo à principiologia do direito processual contemporâneo e há de ser considerado como elemento a ser ponderado diante de eventual análise da caracterização ou não do tipo penal do artigo 36 da Lei nº 13.869/19, não se podendo apreciar eventual alegação de excesso da medida judicial de indisponibilidade de ativos financeiros tomando como referência apenas e tão somente o específico débito vinculado ao processo onde promovida tal constrição, o que traduziria análise apressada e parcial do fato, antes devendo-se considerar o valor total e consolidado dos débitos ativos e exigíveis do devedor perante o mesmo credor-exequente por imperativos de adequado atendimento ao princípio do interesse do credor (CPC, artigo 797) e desejada efetividade da tutela jurisdicional executória, e se o passivo total exigível for superior ao quantum bloqueado o excesso será apenas aparente e a manutenção da constrição acautelatória ou executória pela autoridade judiciária jamais poderá traduzir qualquer conduta criminalmente sindicável nem a fortiori punível.

Portanto, relevante ter presente que o bloqueio ou penhora de ativos financeiros, ademais do expresso amparo legal, constitui mecanismo legítimo e indispensável para conferir efetividade à própria tutela jurisdicional garantida na Constituição Federal no artigo 5º, XXXV, que consagra o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional; outrossim, cumpre não olvidar que a finalidade última da Lei nº 13.869/2019, ao disciplinar os crimes de “abuso de autoridade”, é justamente a de prevenir e punir apenas aquelas condutas mais graves e que impliquem efetivo abuso no exercício da função pública — incluída a função jurisdicional —, não podendo servir de instrumento de intimidação dos agentes públicos — inclusive juízes — para os quais se faz necessário uma margem de liberdade na avaliação dos casos que lhe são submetidos em sua atuação funcional, e sob tais perspectivas é que o tipo penal do artigo 36 da Lei nº 13.869/19 há de ser analisado, partindo-se do pressuposto da legitimidade da medida constritiva e independência técnica da autoridade judiciária na adoção de tal providência que, somente quando patentemente infundada ou manifestamente ilegítima é que poderá ensejar perquirição acerca da caracterização ou não do abuso, sob pena de restar prejudicada a desejada satisfação de pretensões legítimas e seriamente comprometido o próprio exercício da função jurisdicional.

Estas, enfim, as considerações fundadas na nossa experiência prática e que, esperamos, contribuam para um adequado esclarecimento de algumas das variáveis presentes na análise da questão inicialmente proposta.

[1] Para um estudo do artigo 36 da Lei nº 13.869/19 sob tal perspectiva didática, vide: SOUZA, Rennee do Ó. Leis penais especiais comentadas, 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020, pp. 2294-2296.

[2] Não por outra razão que, logo após a publicação da Lei nº 13.869/19, diversos magistrados de primeira instância passaram a indeferir pedidos de bloqueio eletrônico de valores pelo receio de incorrer no crime do artigo 36 da referida lei, o que acabou ensejando pronta revisão pelos tribunais respectivos que, no geral, reconheceram a legitimidade da medida executória em questão e rechaçaram a possibilidade de enquadramento típico apenas e tão somente pela determinação de indisponibilidade de bens devidamente amparada na legislação vigente. A título de exemplo, confira-se os seguintes julgados que bem retratam a questão: TJSP, AI 2093495-69.2020.8.26.0000; TJDFT, AI 0720800-75.2019.8.07.0000; TJMG, AI 5086267-52.2020.8.13.0000; TJRS, AI 0049379-02.2020.8.21.7000; TJAP, AI 0000774-74.2020.8.03.0000; TJGO, AgIn 0048196-98.2020.8.19.0000. A propósito, registre-se que a constitucionalidade do referido art. 36 da LAA encontra-se sub judice no Supremo Tribunal Federal na ADI 6.236/DF ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros — AMB.

[3] Como por exemplo a comum situação em que ocorre penhora de imóvel de valor superior ao valor da dívida, amplamente admitida pela jurisprudência.

[4] Em que pese alguma divergência ainda existente, no momento presente já se destacam alguns precedentes admitindo a penhora de bitcoins e outras criptomoedas, conforme se vê nos seguintes julgados do eg TJSP: AgIn 2078683-51.2022.8.26.0000, AgIn 2093151-88.2020.8.26.0000, AgIn 2212988-06.2021.8.26.0000, AgIn 2172207-39.2021.8.26.0000.

[5] A Recomendação CNJ nº 51/2015 preconiza o uso preferencial do “bacenjud” — atual “SisbaJud” — para a transmissão de ordens judiciais de bloqueio/penhora às instituições financeiras em geral. Para maiores esclarecimentos quanto ao funcionamento do referido sistema, confira-se: “https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/sisbajud” (acesso em 05.07.2022, às 19:10 hs).

[6] A propósito, vide: artigo 786 do CPC e artigos 3º da LEF e 204 do CTN.

[7] Segundo o qual: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.

[8] Com efeito, a fundamentação jurídica da decisão judicial poderá basear-se numa ampla gama de argumentos que lhe deem suporte, e desde que tal argumentação seja racional não se poderá acoimá-la de indevida.

[9] FERNANDES, Odmir; CHIMENTI, Ricardo Cunha; ABRÃO, Carlos Henrique; ÁLVARES, Manoel; BOTTESINI, Maury Ângelo. Lei de execução fiscal comentada e anotada, 4ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 386.

 

Fonte: Conjur.