Nos países que adotam o sistema do contencioso administrativo, os conflitos envolvendo os indivíduos e a administração pública ficam a cargo de uma jurisdição especial, e sobre eles o Poder Judiciário não pode se manifestar.[1] No Brasil, no entanto, a jurisdição é una e a garantia constitucional do acesso à Justiça assegura a todos os indivíduos que sofram uma lesão, ou uma simples ameaça, a algum direito seu, seja ele de qualquer natureza, a possibilidade de recorrerem ao Poder Judiciário a qualquer instante, como prevê o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Esse amplo acesso ao Poder Judiciário, no entanto, não retira dos processos de natureza administrativa a necessidade de observar os imperativos estabelecidos pela Constituição para a solução de qualquer litígio. A Constituição estendeu aos que litigam em procedimento administrativo as garantias processuais do contraditório e da ampla defesa (CF, artigo 5º, inciso LV). Dessa forma, além de lhes propiciar acesso amplo e irrestrito ao Poder Judiciário, a Constituição lhes assegura as garantias das quais se podem extrair uma série de outras (publicidade, motivação, imparcialidade, etc…). Não bastasse a previsão expressa dessas garantias no texto da Constituição, que se observadas caracterizariam o que se poderia denominar de devido processo legal administrativo, uma série de normas infraconstitucionais também as disciplinam. O art. 3º, da Lei 9.784/99, norma geral que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal, por exemplo, confere aos administrados o direito de obterem todas as informações necessárias dos processos administrativos em que tenha interesse e a possibilidade de reagir a elas, formulando alegações e apresentando documentos que deverão ser objeto de consideração pelo órgão competente. O binômio informação-reação, como se sabe, é tradicionalmente utilizado pela doutrina para caracterizar o contraditório. É de Elio Fazzalari o conceito moderno de processo: procedimento realizado em contraditório.[2]O procedimento é elemento essencial do processo e o contraditório é o que lhe garante legitimidade.
O Capítulo IV da Lei 12.846/2013 (artigos 8 a 15) é destinado à disciplina do processo administrativo para a apuração de responsabilidade por violação às condutas nela estabelecidas como ilícitas. De acordo com o artigo 8, caput, dessa lei, a instauração, que pode se dar de ofício ou por provocação dos interessados, e o julgamento de processo administrativo que tenha essa finalidade cabe à autoridade máxima de cada órgão envolvido com a suposta prática de atos ilícitos, competência essa que pode ser delegada uma única vez. A Controladoria-Geral da União, nos casos de ilícitos praticados no âmbito do Poder Executivo Federal, tem competência não só para instaurar processos administrativos de responsabilização, como também para avocar os processos instaurados com fundamento nessa lei a fim de apurar sua regularidade ou corrigir-lhe o andamento. À Controladoria-Geral da União compete ainda a apuração e o julgamento dos atos ilícitos praticados contra a administração pública estrangeira.[3]
Uma comissão, designada pela autoridade administrativa competente, composta por pelo menos dois servidores estáveis, conduzirá o processo administrativo para apuração de responsabilidade por violação à Lei 12.846/2013. Para o exercício dessa tarefa, o artigo 10, parágrafo 1º, prevê que os responsáveis pela condução do processo administrativo poderão contar com o auxílio do Poder Judiciário em especial para a efetivação de medidas necessárias ao bom desenvolvimento da fase instrutória, como por exemplo, as medidas de busca e apreensão. A ausência de previsão legal nesse sentido ensejaria a inadequação do processo administrativo à apuração de responsabilidade por violação à Lei 12.846/2013 devido à ausência de poderes instrutórios daqueles que o conduzem. Um processo em que a apuração dos fatos é limitada não pode pretender ser um instrumento para a resolução com justiça dos litígios, tampouco aplicar severas sanções aos condenados pela prática de atos ilícitos. Por isso, a autoridade administrativa pode e deve se valer da autoridade jurisdicional para produzir provas legítimas e que possam, por consequência, ser consideradas válidas.
Cento e oitenta dias contados da data que a instituiu a comissão processante deverá concluir os seus trabalhos e apresentar relatórios que serão remetidos à autoridade instauradora para julgamento sobre os fatos apurados e sobre a responsabilidade da pessoa jurídica investigada, sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas. Após a conclusão do processo administrativo será dada ciência ao Ministério Público para apuração de eventuais delitos praticados. Para a apresentação de sua defesa, à pessoa jurídica será concedido o prazo de trinta dias, contados a partir da intimação.
O artigo 14 da Lei 12.846/2013 prevê a possibilidade de ser desconsiderada a personalidade da pessoa jurídica “sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica já consagrada na prática jurídica brasileira como mecanismo de efetivação dos processos de execução — mesmo sendo por vezes aplicada de maneira abusiva — constitui meio adequado para efetivação das sanções previstas na Lei 12.846/2013, mas a alocação desse artigo no capítulo destinado à disciplina do processo administrativo não é oportuna. Bastaria a referência ao Código Civil, que estabelece em seu artigo 50 os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica (abuso de direito e confusão patrimonial). Do ponto de vista da responsabilização patrimonial, a desconsideração da pessoa jurídica pode ser feita in executivis, por incidente em separado, mas quando se cogita de sanção restritiva de direitos é fundamental a observância do contraditório, com a garantia da ampla defesa, desde o primeiro momento.
O artigo 6º da Lei 12.846/2013 estabelece que, na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção as seguintes sanções cumulativa ou isoladamente de acordo com as características do caso concreto e a gravidade e natureza das infrações: (inciso I) “multa, no valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação”; e (inciso II) “publicação extraordinária da decisão condenatória”.
O percentual a ser fixado será definido em consonância com uma relação de critérios atenuantes, que reduzem o valor da multa, e agravantes, que o majoram (artigos 17 e 18 do Decreto 8.420, de 18 de março de 2015). Caso o corpo diretivo tenha ciência ou tolerar o ato de corrupção, somar-se-á de 1% a 2,5% do faturamento bruto da empresa. Na hipótese de reincidência da prática do ato, há o acréscimo de 5% da penalidade. Das agravantes devem ser subtraídas atenuantes que funcionam como redutores da penalidade. Se a pessoa jurídica ressarcir o dano causado, a multa deve ser reduzida em 1,5%. A comunicação espontânea do ato lesivo diminui 2% da sanção imposta. O Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, incentiva a adoção de programas de integridade (compliance), que representam regras internas pautadas pela ética e detecção de desvios (artigos 41 e 42). Tais programas de integridade, de auditoria, de aplicação de códigos de ética e conduta e incentivos de denúncia de irregularidades deverão ser estruturados, aplicados e aprimorados constantemente pelas empresas, considerando as características e riscos próprios da atividade por ela exercida.
Na hipótese de não ser possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, o valor da multa será fixado entre seis mil e sessenta milhões de reais. A publicação da decisão condenatória deverá ocorrer em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração, bem como no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade da pessoa jurídica pelo prazo mínimo de trinta dias e no sítio eletrônico da rede mundial de computadores. A aplicação dessas sanções não exclui, ademais, a obrigação de reparação integral do dano causado à administração pública.
O artigo 7º da Lei Anticorrupção, por sua vez, estabelece os parâmetros que deverão ser levados em consideração pelo juiz quando da fixação das sanções pela prática dos atos ilícitos previstos nessa lei. São eles: “(inciso I) a gravidade da infração; (inciso II) a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; (inciso III) a consumação ou não da infração; (inciso IV) o grau de lesão ou perigo de lesão; (inciso V) o efeito negativo produzido pela infração; (inciso VI) a situação econômica do infrator; (inciso VII) a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; (inciso VIII) a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica; (inciso IX) o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados. Em atenção ao dever de motivação das decisões a aplicação de cada um desses parâmetros deve vir acompanhada de adequada justificação minudente.
Dentre os parâmetros que contribuem para a aplicação de penas mais brandas aos condenados, destacam-se os incisos VII e VIII que juntos representam exemplo da função promocional do direito que premia determinado comportamento voltado à consecução de um objetivo jurídico almejado. Nesse sentido, o artigo 16, da Lei 12.846/2013, estabelece a possibilidade de serem celebrados acordos de leniência entre a administração pública e as pessoas jurídicas responsáveis pela violação dessa lei a fim de que estas colaborem com as investigações para em contrapartida ser isenta de algumas penalidades.[4] Os acordos de leniência submetem-se, como é óbvio, também às regras do devido processo legal e não podem ser palco para um processo às escuras, com chantagens e outras práticas sabidamente ilícitas. No âmbito federal, esse acordo será de competência exclusiva da Controladoria-Geral da União (CGU) e pressupõe que a empresa seja a primeira a reconhecer a prática do ato ilícito (reconhecimento de participação na infração), identificar os envolvidos e propor a reparação integral do dano ocasionado, bem como cooperar com a investigação, além de fornecer documentos que comprovem a prática da infração. A competência restou centralizada, por meio do Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, na CGU (artigo 13, incisos I e II: a CGU possui, no âmbito do Poder Executivo federal, competência: I – concorrente para instaurar e julgar PAR – Processo Administrativo de Responsabilização; II – exclusiva para avocar os processos instaurados para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento, inclusive promovendo a aplicação da penalidade administrativa cabível). No entanto, não se sabe se a CGU terá condições de assumir todos esses encargos estabelecidos pelo referido Decreto. Sabe-se, de antemão, que a fiscalização não poderá ficar adstrita à CGU, havendo competência concorrente de outros órgãos do Estado, como o Ministério Público (MP) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por exemplo. Não obstante, reforçando o aspecto centralizador, a CGU poderá requisitar os autos de processos administrativos em andamento em outros órgãos ou entidades da administração pública federal relacionados com os fatos objeto de acordo de leniência. Esse poder da CGU conferido pelo Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, para aglutinar outros processos de outros órgãos é positivo, já que certas práticas encobrem, em muitos casos, cartel com corrupção. Não obstante, acredita-se que esse ponto sofrerá questionamento pelo Ministério Público que certamente defenderá sua independência, bem como suas atribuições constitucionais e legais para participar do processo centralizadoa se instaurar na CGU.
Cumprido integralmente o acordo de leniência, com a reparação integral do dano, a pessoa jurídica tem o direito de: i) isenção da publicação da decisão sancionadora; ii) isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações de órgãos ou entidades públicas; iii) isenção ou atenuação de punições restritivas ao direito de licitar e contratar e; iv) redução do valor da multa se houver.
([1]). V., a propósito, conhecida obra de Jean Rivero, Curso de direito administrativo comparado, 2. ed., São Paulo: RT, 2004, trad. José Cretella Jr., esp. pp. 157 e ss.
([2]). Istituzioni di diritto processuale civile, Padova, CEDAM, 7. ed., 1994, § 2º, pp. 10-12; Note in tema di diritto e processo, Milano, Giuffrè, 1957, pp. 110 e ss; verbete “Processo: teoria generale”, in Novissimo digesto italiano, Torino, UTET, 1966, vol. 13, pp. 1.067-1.076.
([3]). in verbis: “§1o. Considera-se administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro. §2o. Para os efeitos desta Lei, equiparam-se à administração pública estrangeira as organizações públicas internacionais. §3o.Considera-se agente público estrangeiro, para os fins desta Lei, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública em órgãos, entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro, assim como em pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.”
([4]). in verbis: “Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: I – a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e II – a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração. §1o O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: I – a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; II – a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo; III – a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento. §2o A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6o e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável. §3o O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado. §4o O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo. §5o Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas. §6o A proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo. §7o Não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada. §8o Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar novo acordo pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento. §9o A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei. §10. A Controladoria-Geral da União – CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.”
Fonte: ConJur