Márcio Aguiar, Fundador da Corbo, Aguiar & Waise, Sociedade de Advogados, esteve à conversa com a Revista Pontos de Vista, onde abordou o impacto da Inteligência Artificial no universo da advocacia, assegurando não acreditar que as tecnologias substituam o advogado.
Como Fundador da Corbo, Aguiar & Waise, Sociedade de Advogados, poderia partilhar com os leitores qual tem vindo a ser a grande diferenciação competitiva da empresa no mercado jurídico?
Respondo com algum pragmatismo e digo que não existem milagres competitivos nesse mercado. Existe, sim, muito marketing pessoal.
Alguns escritórios transformaram-se em grandes empresas de negócios jurídicos. Uma espécie, eu diria, de comércio do direito. Sou um crítico, mas respeito, obviamente, porque cada gestor tem a sua particular visão estratégica do respetivo negócio.
Nós, da Corbo, Aguiar & Waise, somos muito tradicionais nesse aspeto. Continuamos a utilizar aquela velha, mas honesta receita de “bolo da vovó”. Oferecemos lealdade, discrição e transparência. Não somos adeptos da perfumaria.
O nosso olhar está diretamente associado às perspetivas do nosso cliente. Algo simples. A pergunta é: Porque é que esse cliente nos vai escolher em detrimento de outro concorrente? A resposta define os nossos caminhos e torna-nos diferentes. A maioria dos escritórios, de grande porte, como o nosso, adota todas as políticas exigidas pelo mercado. As diferenças estão nos detalhes. Gostamos de navegar junto com o cliente e sempre na mesma direção, através de uma advocacia que ainda acreditamos, personalizada, sob medida para cada tipo de cliente, sem seguir padrões. O cliente quer sentir-se seguro e aconchegado na relação. Não se pode equacionar um cliente, não importa o tamanho, como apenas mais um do portfólio do escritório.
Essas são premissas básicas, mas extremamente valiosas, porque revelam, inclusive, capacidade de empatia e adaptação. O trabalho de prospeção nesse mercado é complexo, porque existem milhares de escritórios. Os esforços, para conquistar um novo cliente, são enormes. É um processo seletivo árduo. O curioso, entretanto, é ver o distanciamento de alguns escritórios após o casamento. Não faz sentido isso. A relação profissional também se aproxima muito das demais, como a conjugal, por exemplo. É preciso estar sempre próximo do parceiro e mantê-lo seguro na relação. É um erro primário e fatal esse distanciamento do cliente depois que a relação é consolidada.
A equação, talvez, seja muito simples, com os ingredientes da qualidade dos serviços, inegociáveis na relação, e a proximidade. O cliente ditará o espaço territorial que deseja empregar nessa relação e o escritório, por sua vez, apenas se enquadra aos limites impostos.
Considerando o foco da Corbo, Aguiar & Waise em soluções jurídicas para grandes volumes e na eliminação de conflitos, como observa o papel da inteligência artificial no contexto dos serviços jurídicos oferecidos pela empresa?
Questão muito interessante. Interessante, porque antes de qualquer observação simplista, julgo ser importante deixar claro que nesse campo existe uma variedade de conceitos para definir a inteligência artificial.
A máquina, por mais sofisticada que seja, nunca substituirá o ser humano, justamente porque não se consegue artificializar a inteligência natural. É a capacidade do ser humano que tem o poder de criação. E posso assegurar que assim continuará. Não teremos uma guerra entre seres humanos e máquinas. Também não seremos dizimados do mercado de trabalho pelas máquinas. Passamos e continuaremos a passar por um processo de adaptação e inclusão. A inteligência artificial é a roda do século XXI. Tempo, energia e eficiência através de processos autómatos. Na verdade, aquele que for mais tech será desafiado a ser mais touch.
Dois autores brasileiros, Lulu Santos e Nelson Motta, ainda na década de 80, escreveram uma música chamada “Como uma Onda”. Eis uma das estrofes: “…tudo que se vê não é – Igual ao que a gente viu há um segundo – Tudo muda o tempo todo no mundo – Não adianta fugir – Nem mentir – Pra si mesmo agora…”. Sabe, é meio por aí. O mundo é um organismo vivo e em constante processo de transformação. Não podemos fugir dessa realidade. O artesanato jurídico, costumo a dizer, está “démodé”.
No Brasil, sobretudo, em que existe uma enorme cultura de judicialização, não é possível trabalhar dentro daqueles padrões rudimentares. São milhares de ações levadas diariamente para dentro do Judiciário. Um advogado, hoje, precisa de instrumentos tecnológicos que não substituem a sua capacidade intelectual, mas que o ajudem a economizar tempo, já que esse tempo, hoje, é mais precioso do que era ontem. A advocacia é um produto muito caro e, nesse mercado específico, sem a tecnologia, você perde em competitividade, porque as grandes estruturas são muito onerosas e ineficientes.
Existe um vastíssimo universo nas nossas mãos, estranhamente pouco conhecido pelos operadores do direito, talvez por desinteresse, conservadorismo ou medo do novo. A alienação é o pior dos caminhos, porque te retira do jogo. Vou citar pequenos exemplos de novas ciências tecnológicas que empregam praticidade nas atividades secundárias jurídicas e libertam mais espaço de tempo para o advogado agir apenas dentro das tarefas de cunho intelectual e crítica. A Jurimetria -, não muito diferente da Machine Learning-, deve ser uma das técnicas científicas mais utilizadas pela maioria das grandes bancas jurídicas. Uma tecnologia que, através de métodos quantitativos, como a estatística e a Probabilidade (algoritmos), tem a capacidade de antever o destino de uma ação, pelas tendências de determinado juízo na forma de enxergar uma modalidade de causa. A partir daí é possível criar uma estratégia argumentativa para manter ou mudar aquela posição. Outro exemplo são os moderníssimos e tão badalados Chatbots, nascidos de tecnologias Lawtech, usados na geração de documentos diversos, muitos com argumentos e teses jurídicas.
Com a crescente influência da inteligência artificial no mundo jurídico, qual tem sido a abordagem da Corbo, Aguiar & Waise para integrar essas tecnologias nas suas práticas e como é que a mesma tem contribuído para agregar valor empresarial aos negócios dos seus clientes?
Prestamos serviços para grandes empresas, multinacionais do mercado. A resposta a essa pergunta é igualmente simples e já foi um pouco abordada na anterior. Sobrevivência é a palavra. A utilização da automação e da inteligência artificial é uma questão de sobrevivência.
Se não otimizarmos os serviços, não os tornamos mais dinâmicos, imediatos, com relatórios gerenciais panorámicos dos riscos das ações e o passivo envolvido nelas, é game over. Você está literalmente fora. Realidade nua e crua. A inteligência artificial não é uma opção. A IA é a sobrevivência competitiva nesse mercado, dentro de uma equação de custos x eficiência. O cliente quer um escritório que consiga entregar resultados dentro do menor custo possível. A IA entra nessa lógica mercadológica no momento em que confere ferramentas capazes de uma leitura segura e veloz dos riscos de perda. A partir daí são tomadas decisões sobre a melhor estratégia em determinada ação, ou comunidade de ações, porque nem sempre pode ser o caminho da defesa processual, mas de um bom acordo, por exemplo. Chamamos isso de eficiência financeira. A IA é o instrumento que permite essa entrega com maior segurança. Surgiu, talvez muitos nem tenham percebido, dentro dos escritórios de advocacia mais modernos, um novo tipo de profissional, o Engenheiro de Produção.
Os princípios da engenharia de produção levam o escritório a um gerenciamento mais eficiente, com redução de custos e tempo, elevando consideravelmente a qualidade dos serviços jurídicos, porque o profissional se afasta de tarefas burocráticas administrativas e foca apenas na parte intelectual.
Uma perspetiva de engenharia pode descobrir formas de diminuir custos operacionais sem prejudicar a qualidade dos serviços. Ela também auxilia na criação de programas de treinamento contínuo para a equipa, garantindo a sua atualização com as melhores práticas e inovações tecnológicas. Além disso, a engenharia de produção permite a implementação de padrões de qualidade, minimização de erros e uma alocação eficaz de recursos.
Na época em que estudei em Londres, também aproveitei para ter contacto com empresas e alguns escritórios de advocacia. Há um grande investimento em fatores humanos como a interdisciplinaridade. Alguns desses escritórios, na ocasião, já contavam com o LPM (Legal Project Management), ator responsável pela gestão dos projetos jurídicos.
Essa engenharia interdisciplinar é fundamental para os escritórios jurídicos, porque mapeiam áreas sensíveis e corrigem rumos.
Muitos têm expressado preocupações sobre a substituição do Advogado pela IA. Qual é a sua visão sobre esse debate? Acredita que a IA não é um substituto do Advogado, mas sim um membro da equipa jurídica?
Não acredito nessa possibilidade dentro da advocacia contenciosa e ouso desafiar os que defendem essa hipótese. Até onde me consta, a calculadora, por mais sofisticada que seja, não substituiu o matemático e o engenheiro, no campo das ciências exatas. Difícil, reafirmo, que as tecnologias substituam o advogado.
Quero, agora, promover aqui uma diferenciação importante nessa percepção conceitual que, equivocadamente, muitos têm sobre automação e IA. São ambientes científicos diferentes.
Todos os escritórios, via de regra, dispõem dos mecanismos modernos de automação de processos e cito como exemplo comum os softwares jurídicos. Esses aplicativos apenas auxiliam os sistemas no gerenciamento de dados e informações. São ferramentas sistémicas que tornam o dia a dia do advogado muito mais eficiente e prático. São programas codificados para a execução de tarefas, em grande parte, administrativas, para aumentar a produtividade sem diminuir a qualidade do serviço.
É algo, portanto, muito distante da inteligência artificial, já que a máquina não opera algo próximo do raciocínio lógico. A inteligência artificial, na minha opinião, deve ser capaz de dispensar qualquer influência humana para que a “máquina” resolva um conflito de natureza jurídica. Um pequeno exemplo é o aplicativo DoNotPay, conhecido como um chatbot de serviços jurídicos, construído inicialmente para contestar multas de estacionamento. Note que é um universo muito limitado.
Em algumas áreas do direito, a exemplo das que operam no campo dos contratos, talvez a IA possa ter uma força maior, mas ainda assim não substituirá o advogado, mesmo porque é importante que o técnico faça uma revisão do que foi artificialmente produzido, através de um olhar crítico e sensitivo. A máquina é gerada pelo ser humano e controlada por ele. Kasparov só perdeu a segunda partida de xadrez porque a máquina adversária sofreu um “bug” que subverteu a lógica. Isso já diz muito. No dia em que a IA conseguir substituir o advogado, também será, pela lógica, capaz de substituir os demais membros do Poder Judiciário, incluindo os magistrados. Não será difícil, se isso um dia acontecer, a IA também proferir uma sentença. As máquinas, então, deteriam o poder de solucionar todos os conflitos legais da humanidade. Não me parece ser algo plausível, sobretudo porque falharíamos no importantíssimo accountability hermenêutico.
Num contexto onde a IA tem automatizado tarefas repetitivas e fornecido análises preditivas, em que medida a Corbo, Aguiar & Waise tem utilizado essas tecnologias para otimizar o trabalho jurídico e permitir que os Advogados se concentrem em atividades mais complexas que requerem julgamento e conhecimento humano?
O Brasil é um país que há muito vive uma esquizofrenia da litigiosidade. Milhares de ações são despejadas diariamente para dentro do Judiciário. Empresas, as grandes, principalmente, estão a ser asfixiadas com milhares de ações. E, para piorar esse cenário, existe o que chamamos de “advocacia predatória”. Refiro-me ao ajuizamento em massa de processos judiciais abusivos e fraudulentos. A inteligência artificial é utilizada para a identificação dessas práticas abusivas. O nosso escritório é um dos que ajuda a combater esse tipo de advocacia produzida artificialmente com automação inteligente.
Quais são as principais oportunidades que o advento da IA tem trazido para os escritórios de Advocacia? E quais são os desafios que exigem uma adaptação cuidadosa por parte dos Advogados?
As Universidades de Direito, classicamente, são muito conservadoras e não se adaptaram – ainda – às novas realidades e necessidades do mercado. Refiro-me, como primeiro exemplo, às técnicas de negociação, fundamentais para a busca de uma resolução amigável do conflito, sem necessidade de movimentação da complexa e pesada máquina judiciária. O segundo exemplo está na instrução dos académicos com as ferramentas utilizadas na engenharia. O terceiro, fica na ausência de educação digital.
Podemos, agora, a partir destas três premissas, entrar diretamente no campo da eficiência operacional e financeira, através da otimização das rotinas diárias dos advogados. Há muito que já utilizamos instrumentos de dados como o Fluxograma, Diagrama de Gantt, Análise SWOT, dentre outros.
Também temos os chamados AJVs ( assistentes jurídicos virtuais). Os assistentes jurídicos virtuais nada mais são do que módulos da IA generativa inseridos dentro de banco de dados com conteúdo jurídico.
Respondo sim para a o cuidado que os advogados devem ter sobre a inteligência artificial. Nós, os seres humanos, devemos estar dentro do cockpit. O avião, com toda tecnologia, depende totalmente do piloto. Não é diferente nos moderníssimos carros de Fórmula 1. A tecnologia acelera, mas não conduz sozinha.
Todas as novas tecnologias, mais avançadas, já contêm conceitos de natureza biológica, como as redes neurais e as chamadas alucinações. As máquinas também são vítimas das alucinações. Modernos aplicativos da inteligência artificial já alucinaram e criaram falsas jurisprudências. É inegável, obrigatória e fonte de sobrevivência dos escritórios, a utilização da IA. É um mundo sem volta e quem, repito, não se adaptar, ficará sem capital competitivo no mercado.
Não julgo, naturalmente, a competência intelectual dos advogados nem a possibilidade de funcionarem sem tecnologia, com êxito. Refiro-me aos escritórios que atuam com grandes volumes de ações, tipicamente estruturados como as grandes empresas.
No campo da inteligência artificial, na essência, aqui novamente ressalvando a distinção com a automação, vejo o ChatGPT 4.0 e o Gemini. Penso que, por enquanto, sejam os únicos assistentes virtuais com maior capacidade de entregar trabalhos jurídicos com boa margem de acerto e qualidade.
Mas… -, e esse “mas”, estará presente ainda no meu cauteloso olhar, já que algumas limitações consideráveis devem servir como um sinal amarelo.
Vou citar apenas duas, porque penso que sejam, na minha opinião, as que exigem maior cuidado. A primeira é o chamado “black box problem”.
O black box não apresenta as premissas, já que são elas, no conteúdo, desconhecidas. No direito, sobretudo, utilizamos a premissa em lógico, como sendo o conjunto de uma ou mais de uma sentença declarativa, acompanhada de outra frase declarativa, a conclusão óbvia. A conclusão, portanto, parte da consequência lógica das premissas que a antecederam, como proposições que a justificam. Um exemplo bem simples para os leitores: Premissa maior: Todos os seres humanos são mamíferos. Premissa menor: O Fulano é um ser humano. Conclusão: Logo, o Fulano é um mamífero.
As ferramentas que se utilizam de redes neurais artificiais são as que mais sofrem com o black box problem. Não se sabe como e porquê a ferramenta tomou determinada decisão. O caminho é obscuro, desconhecido, já que não é possível ver o conteúdo que existe entre essas diversas camadas. Surge-nos, então, a dúvida sobre a certeza do caminho e a respetiva correção dele.
Os profissionais do direito, para segurança própria e convencimento, precisam de conhecer e indicar as fontes do conteúdo jurídico que levam para dentro das teses que defendem, sob pena de ficarem restritos ao campo opinativo, apenas. A inconsistência gera incerteza e consequentemente insegurança.
Trato, agora, sobre o fenómeno da alucinação, baseado em referências falsas sobre precedentes jurisprudenciais ou até mesmo na análise das normas jurídicas. Foi notícia, não tem muito tempo, nos sites jurídicos do Brasil, a fundamentação de uma sentença com tese falsa, aparentemente inserida pelo assistente virtual ChatGPT. A sentença judicial, segundo consta na reportagem, foi fundamentada em uma jurisprudência inexistente do Superior Tribunal de Justiça. Algo inventado pela IA generativa. Existem relatos de que o usuário, quando insiste em pedir alguma jurisprudência, pode receber algo inventado. É o problema da alucinação.
Por fim, considerando a combinação da inteligência humana e artificial na Advocacia, como acha que essa sinergia pode impulsionar o progresso do mundo jurídico e garantir melhores resultados para os clientes da Corbo, Aguiar & Waise, no futuro a médio e longo prazo?
Os modernos escritórios de advocacia, atentos às necessidades do mercado, adequaram-se rapidamente ao que há de mais sofisticado no mercado. A equação está na busca do melhor resultado, com menor tempo despendido e maior eficiência financeira, sem prescindir da qualidade e da boa técnica jurídica. Resolvida essa equação certamente estaremos num bom caminho. Utilizem a engenharia de produção para detetar processos ineficientes, porque essa medida se traduz em economia de tempo e recursos financeiros. Automatize tarefas quotidianas para impulsionar a produtividade e minimizar falhas humanas.
Não esqueçam, contudo, que a tecnologia é apenas a superfície, enquanto os processos bem definidos formam a base forte. Delegando aos “robôs” e tecnologias sensitivas, os advogados têm mais tempo livre para se focar nas atividades que demandam maior raciocínio e concentração. Dessa maneira, sem pressa e com maior tempo, os seus trabalhos ficam melhor elaborados e as chances de obter sucesso na causa de um cliente tendem a aumentar, como consequência. O advogado ficará cada vez mais responsável pela execução das atividades consideradas estratégicas e mais importantes, que demandam uma análise mais detalhada e crítica.
Fonte: <Pontos de Vista